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O leite que sai direto da vaca, e que dá origem a tantos outros produtos, é considerado um alimento de alto valor nutricional. Só que um dos compostos desse mix, a gordura saturada, passou por maus bocados nas últimas décadas — pairou sobre ela a acusação de ser a grande responsável por ganho de peso e doenças cardíacas. Para desvincular o leite desses infortúnios, versões magrinhas da bebida e de seus derivados chegaram e dominaram as prateleiras.

Mas parece que o jogo virou. Estudos recentes têm dado força à causa dos laticínios integrais, indicando que a presença dessa gordura não os torna piores para a saúde. Uma dessas pesquisas foi conduzida na Escola de Saúde Pública da UTHealth, em Houston, nos Estados Unidos, e contou com a participação de quase 3 mil adultos de 65 anos ou mais. Depois de acompanhá-los por 22 anos, os cientistas concluíram que tirar proveito de leite, queijo e iogurte integrais não aumentou nem um tiquinho o índice de mortalidade desse pessoal.

O diferencial é que, além de considerar os relatos dos voluntários sobre a dieta, os estudiosos dosaram neles três tipos de biomarcadores — uma espécie de vestígio no sangue — relacionados ao consumo de gorduras dos laticínios. Em resumo, a investigação não se baseou somente na memória das pessoas, o que poderia levar a distorções da realidade.

De acordo com a nutricionista brasileira Marcia Otto, uma das principais autoras do trabalho, outro ponto fortalece os resultados: a análise de sangue ocorreu em três ocasiões diferentes. “Normalmente, há uma medida no início da pesquisa e, aí, é feito o acompanhamento. Mas sabemos que o consumo de comida se altera ao longo da vida”, observa.

Além de não abalar a saúde em geral, uma das gorduras avaliadas de perto inclusive protegeu contra problemas cardiovasculares, mais especificamente em relação ao AVC — a possibilidade de morrer em decorrência desse evento caiu 42%.

Leite integral não é só gordura

Para Marcia Otto, esses achados nos convidam a refletir sobre como encaramos os alimentos hoje. “Eles têm sido reduzidos à sua quantidade de gorduras, proteínas ou carboidratos”, critica. “Só que não podemos analisar a comida de forma segmentada. Afinal, trata-se de uma matriz complexa, composta de vários nutrientes”, aponta.

Antes de publicar suas descobertas, a nutricionista vasculhou outros estudos e, ancorada numa ampla pesquisa, ressalta que mais uma coisa está ficando clara: o termo “gordura saturada” é abrangente demais. Em outras palavras, a versão encontrada nos laticínios teria uma estrutura diferente daquela presente na carne vermelha, cujo excesso é ligado a doenças do coração.

“Faz todo o sentido. Precisamos levar em conta os subtipos, não só a gordura saturada total”, argumenta o nutricionista Dennys Cintra, pesquisador na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

A nutricionista Clarissa Fujiwara, da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso), diz que a investigação feita em solo americano abre muitas portas e, acima de tudo, coloca em xeque a orientação de sempre priorizar lácteos magrinhos.

“Se uma pessoa tem alimentação equilibrada, é ativa e acompanha sua saúde, não tem motivo para comprar tudo desnatado”, afirma. Inclusive porque, muitas vezes, o corte calórico leva embora o prazer de tomar um copo de leite. “A gordura dá mais sabor”, justifica a representante da Abeso.

“Ainda tem a questão da saciedade”, acrescenta a nutricionista Nágila Damasceno, da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp). Tanto a proteína como a gordura de leite e derivados lentificam a digestão. De acordo com Nágila, que também é professora da Universidade de São Paulo (USP), esse é um dos motivos que ajudam a entender por que a ingestão das versões integrais não representa, por si só, uma ameaça à balança.

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Sem restrições para os menores

Crianças e adolescentes não têm motivos para consumir laticínios desnatados. Nessa faixa etária, a gordura na medida é item primordial para garantir o pleno desenvolvimento.

Fora isso, segundo a pesquisadora Marcia Otto, estudos têm revelado que os pequenos que consomem essas versões ficam com fome mais cedo. Daí, acabam procurando por itens nada vantajosos, como bolachas e salgadinhos.

Em paralelo, há indícios de que a escolha do integral não interfere negativamente no peso da molecada.

O verdadeiro problema é o excesso

Um levantamento com cerca de 18 mil mulheres assinado pela reputada Escola de Medicina da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, demonstrou que, no decorrer de 11 anos, aquelas que consumiam mais laticínios integrais eram 8% menos propensas a se tornarem obesas comparadas às que maneiravam nesse tipo.

“Não é a versão com gordura que faz o peso subir, mas, sim, a quantidade excessiva de lácteos integrais consumida”, esclarece a nutricionista Brunna Boaventura, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Perceba: embora os laticínios aparentemente carreguem uma gordura de perfil menos nocivo, a recomendação é que seu consumo não ultrapasse 10% das calorias ingeridas em um dia. “Se o indivíduo estiver no limite e quiser adicionar o leite integral, por exemplo, não dá. Será preciso fazer ajustes para encaixar o alimento”, raciocina Cintra. Nessa hora em que a nutrição esbarra na matemática, nada melhor do que consultar um especialista.

Cabe também mencionar que, no início desse estudo de Harvard, todas as participantes tinham um peso considerado adequado. Para Nágila, quando um indivíduo está com quilos extras ou possui fatores de risco cardíaco, como colesterol alto, aí a conduta tem suas particularidades. “Precisamos pensar em escolhas mais apropriadas para reduzir o excesso de calorias e de algumas gorduras”, explica. Talvez, aí, a solução seja trocar o produto regular por opções semi ou desnatadas.

“Às vezes, porém, as pessoas preferem diminuir o volume de consumo dos integrais a substituí-los por essas versões”, pondera Brunna. De novo, o nutricionista, ou o médico, traçará o melhor plano para agradar a saúde e o paladar.

“Falou-se tanto que a gordura saturada é perigosa, mas faltou frisar que o problema é o abuso”, diz Cintra. Até porque não adianta apostar no iogurte magro, só que lotado de açúcar. Ou tomar o leite desnatado e logo depois compensar nas guloseimas. Assim como o alimento, a dieta também merece ser vista por inteiro.

Mas e a tal da lactose?

Não foi só a gordura que abalou a reputação de leite e derivados. Seu açúcar, a lactose, divide essa responsabilidade. Ora, tem gente que produz menos lactase, a enzima que quebra a lactose, e isso ocasiona desconfortos gastrointestinais.

Contudo, os especialistas são categóricos: só faz sentido restringir esses alimentos em casos de intolerância real ao açúcar ou de alergia às proteínas do leite. No mais, sem pânico. “Essa onda fez as pessoas demonizarem os lácteos, esquecendo seu lado positivo”, lamenta Brunna.

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Iogurte

Assim como o leite, é excelente fonte de cálcio, mineral que ajuda a manter os ossos fortes. Algumas pesquisas indicam que a relação entre lácteos e controle do peso tem influência decisiva desse nutriente.

A nutricionista Silvia Albertini, da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (Famerp), no interior paulista, lembra ainda que o alimento contribui para o equilíbrio da microbiota intestinal, algo que traz impacto positivo para todo o organismo. Só é crucial saber escolher — mas o recado não tem a ver com a gordura, não.

“O melhor iogurte é aquele com menos ingredientes na composição”, declara a nutricionista Aline Castaldi, da Universidade São Francisco, em Campinas, no interior de São Paulo. Na prática, quem leva os louros é o natural mesmo. “Os saborizados têm quantidade grande de açúcar”, justifica a nutricionista Elizabete dos Santos, mestre em ciências pela Faculdade de Saúde Pública da USP.

Você pode até deparar com potinhos alegando adição de ingredientes benéficos, como fibras. “Mas, dependendo do produto, o teor é insignificante. Compensa mais acrescentar frutas, sementes, castanhas e farelos em casa”, recomenda Silvia.

Se achar muito difícil encarar o azedinho característico do iogurte natural, o conselho de Elizabete é colocar um pouquinho de mel. “Ou até mesmo uma geleia caseira, feita com fruta congelada”, sugere. A versatilidade do iogurte natural, seja ele integral ou desnatado, é seu grande trunfo.

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O queijo

Ele é bem-vindo para atingir as três porções de lácteos que deveríamos consumir por dia. Inclusive, em uma revisão chinesa de 15 estudos, o consumo diário de 40 gramas do alimento (o correspondente a uma porção, ou cerca de três fatias de mussarela) foi ligado a menor risco de doenças cardiovasculares.

A nutricionista Nágila, da Socesp, nota que os queijos são fontes de nutrientes importantes. “Mas não dá para sentar à mesa e consumir quanto quiser”, avisa. Até porque alguns tipos são mais cheios de gorduras saturadas do que outros — aí fica fácil extrapolar a cota.

E, no caso desse tipo de lácteo, tem outro aspecto que merece atenção total: o teor de sódio. Isso porque o excesso desse mineral está intimamente relacionado à subida da pressão arterial, situação que manda o coração para a corda bamba.

Para minimizar o perigo, olho no rótulo. “Estudos com queijo branco já chegaram a mostrar que a quantidade de sódio variou mais de 14 vezes de uma marca para outra”, relata Silvia. O limite é de 2 mil miligramas do mineral por dia.

No fim das contas, variedades como ricota, minas frescal, cottage e mussarela ganham a preferência no quesito “dia a dia”. Já os mais gordurosos e salgados podem ficar para ocasiões especiais.

Leite

Em experiência recente, pesquisadores da Universidade de Copenhague, na Dinamarca, recrutaram 18 adultos e todos tomaram, em momentos diferentes, o leite integral e o desnatado. Após seis semanas, os resultados indicaram elevação de colesterol bom (HDL) durante a intervenção com leite integral. Já fatores como glicemia, insulina e colesterol total e LDL (o ruim) permaneceram inalterados.

“Isso reforça que o leite sozinho não interfere nesses parâmetros, mas, sim, todo um padrão de consumo alimentar”, interpreta Brunna Boaventura, professora da UFSC. Ela frisa, porém, que os voluntários estavam com a saúde em dia.

Agora, independentemente do tipo escolhido, nada de lotar o copo de achocolatado, viu? A nutricionista Elizabete recomenda usar cacau em pó. “O paladar pode estranhar o amargor no início. Mas é só adoçar com um pouco de açúcar demerara”, diz.

Sua cisma com o leite tem a ver com resquícios de antibióticos, hormônios e por aí vai? “Como qualquer outro alimento, existe o risco de termos resíduos de contaminantes, mas há um trabalho forte de prevenção e fiscalização para garantir que estejam abaixo dos limites estabelecidos”, garante Marcelo Bonnet, engenheiro de alimentos da Embrapa Clima Temperado. Segundo ele, leite contaminado de verdade não pode chegar ao mercado.

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